
1.4 A TEODICÉIA CRISTÃ
1.4.1 A VISÃO DO MAL COMO ELEMENTO DE CONSTRUÇÃO DO
CARÁTER
Um dos Pais da Igreja, chamado Ireneu de Lion (130 – 202), ao tratar da
existência do mal, apontou que este era necessário para o aperfeiçoamento de todos os
homens. Assim, o mal seria algo que contribuiria para o crescimento, fortalecimento e
amadurecimento do homem no mundo, sendo este um “vale onde as almas são
forjadas”.
Essa idéia é bastante interessante, principalmente para aqueles cristãos que
descobriram a graça e o amor de Deus em maior profundidade, justamente nos
momentos de aflição ou de sofrimento pelos quais passaram.
Contudo, essa visão não concilia a existência do mal com a também existência
de um Deus de amor, que é onipotente e poderia perfeitamente amadurecer o homem
sem que este necessitasse ser submetido a um contato com o mal.
E ainda, conforme ensina o Dr. Alister E. McGrath “essa abordagem parece
apenas encorajar uma aquiescência [aceitação] em relação à presença do mal no mundo,
sem apresentar nenhum direcionamento ou estímulo moral para que o homem resista ao
mal ou o supere”, o que é ensinado em Romanos 12.21.
1.4.2 O MAL ORIGINADO DA CRIATURA E NÃO DO CRIADOR
Outra abordagem sobre o assunto trouxe Aurélio Agostinho (354 – 430), que ele
formulou através de suas lutas contra o sistema gnóstico e sua evolução: o
maniqueísmo. Esse cristão fervoroso cria convictamente que tanto a criação, quanto a
redenção eram obras do mesmo Deus, desta maneira, seria loucura pensar que o mal
teria sido criado junto com as demais obras de Deus, pois isso colocaria em Deus a raiz
do mal.Conforme Agostinho o mundo fora criado por Deus em uma condição de
perfeição absoluta, entretanto, o homem, por fazer mal uso de sua liberdade, condenou a
si mesmo e ao mundo à corrupção pelo mal.
È o que ele diz em sua obra Confissões, nas seguintes passagens:
“Quem há mais inocente que Vós [Deus], pois são as próprias obras
que prejudicam os pecadores? (...) mas que repouso seguro há fora
do Senhor?”
“Assim que a alma peca, quando se aparta e busca fora de Vós o
que não pode encontrar puro e transparente, a não ser regressando a
Vós de novo.”
Contudo, para que o homem pudesse fazer mal uso de sua liberdade e escolher o
mal, este “mal” deveria existir precipuamente [anteriormente] à humanidade. Agostinho
apontou que o “mal anterior”, foi a tentação realizada por Satanás sobre Eva e Adão,
logo, Deus não poderia ser considerado o responsável pelo mal.
De onde, então, veio Satanás, posto que é uma criatura de Deus, e se Deus cria
todas as coisas boas, por indução não poderia ter criado um Diabo?
Agostinho aponta que Deus criou Satanás como um anjo perfeito e sem traço de
maldade, mas esse anjo quis se tornar semelhante a Deus, e dele veio a rebelião na qual
hoje se encontra o mundo.
A pergunta que viria em seguida seria: Como um anjo, criado bom e perfeito,
poderia ter se tornado mal? Segundo o Dr. Alister E. McGrath “Agostinho parece ter se
calado em relação a esse ponto”.
1.4.3 O MAL ORIGINADO PELO PECADO
João Calvino (1509 – 1564), o reformador europeu, em sua obra Institutas ou
Tratado da Religião Cristã, também aborda a existência do mal, e o expõe de maneira
clara, como sendo ele gerado totalmente pelo pecado, primeiro de Lúcifer, depois do
homem.
Segundo Calvino, nenhuma ligação pode ser engendrada [realizada] entre a
existência do mal na natureza, e Deus como criador dessa natureza, ser também o
“criador do mal”, conforme expõe nas Institutas:“Portanto, lembremo-nos de que nossa ruína deve ser imputada à
depravação de nossa natureza, não à natureza em si, em sua
condição original, para que não lancemos a acusação contra o
próprio Deus, como sendo o autor dessa natureza.”
“Portanto, afirmamos que o homem está corrompido por
depravação natural, contudo ela não se originou da própria natureza
– que foi criada perfeita por Deus. Negamos que essa depravação
tenha se originado da própria natureza como tal, para que deixemos
claro que ela é antes uma qualidade adventícia que sobreveio ao
homem, e não uma propriedade substancial que tenha sido
congênita desde o princípio.(..) Nem o fazemos sem um patrono,
porque, pela mesma causa, o Apóstolo ensina que somos todos por
natureza filhos da ira [Ef. 2.3].”
Explicação:
1. depravação natural – isto é, que veio de sua escolha pelo mal.
2. da própria natureza – que foi criada perfeita por Deus.
3. propriedade substancial – aquilo que constitui a base de algo, a origem.
4. congênita – gerado simultaneamente com a Criação.
Por não ser Deus o criador do mal, concluiu Calvino que:
“Como poderia Deus, a quem uma a uma comprazem suas mínimas
obras, ser inimigo da mais nobre de todas as criaturas [o homem]?
Deus, porém, é antes inimigo da corrupção de sua obra, e não da
própria obra.”
Desta maneira, é ensinado que o problema do mal não reside em Deus, mas na
corrupção que sofreu a natureza, sendo que esta corrupção foi efetuada, primeiramente
por Satanás e, posteriormente, através da sedução de Satanás, pelo homem, que foi
criado perfeito.
1.4.3.1 A ORIGEM DO MAL EM SATANÁS
Como havia pensado anteriormente Agostinho, Calvino localizou a origem do
mal no mundo como proveniente de Lúcifer que, pecando, tornou-se Satanás, segundo o
próprio Calvino ensina:“Como, porém, o Diabo foi criado por Deus, lembremo-nos de que
esta malignificência que atribuímos à sua natureza não procede da
criação, mas da depravação. Tudo quanto, pois, tem ele de
condenável, sobre si evocou por sua defecção e queda. Pois visto
que a Escritura nos adverte, para que não venhamos, crendo que ele
recebeu de Deus exatamente o que é agora, a atribuir ao próprio
Deus o que lhe é absolutamente estranho. Por esta razão, Cristo
declara [Jo. 8.44] que Satanás, quando profere a mentira, fala do
que é próprio à sua natureza, e apresenta a causa: „porque não
permaneceu na verdade‟.
De fato, quando estatui que Satanás não persistiu na verdade,
implica em que outrora ele estivera nela; e quando o faz pai da
mentira, lhe exime isto: que não se impute a Deus a falta da qual
ele mesmo foi a causa.”
Explicação:
1. não procede da criação, mas da depravação – Deus criou a Lúcifer, que em
grego significa “portador da luz”, contudo este se degenerou, ao querer ser semelhante
a Deus, pecando, e se tornando Satanás, que em hebraico significa “adversário”.
2. De fato, quando estatui que Satanás não persistiu na verdade, implica em que
outrora ele estivera nela – ou seja, em princípio ele fora um ser bom e perfeito, que por
decisão própria se afastou de Deus.
Assim, o mal possui uma origem, não em Deus, mas em uma de suas criaturas
perfeitas, que intentou tornar-se maior que seu criador, o que Deus não admite (Is.
42.8).
1.4.3.2 A ORIGEM DO MAL NO HOMEM E SUA EXTENSÃO A TODA
CRIAÇÃO
Satanás havia pecado e, consequentemente, foi expulso da presença de Deus e de
suas santas atribuições (Is. 14). Um novo mundo havia sido recriado, e nele um novo ser
fora feito: o homem, sendo que o primeiro foi chamado por Deus de Adão.
Adão fora criado em perfeição material e espiritual, possuindo em estado
completo o livre-arbítrio, e ainda mais: possuindo a inclinação natural para o bem. Deus
lhe colocou no Éden e, para tornar válido seu livre-arbítrio, lhe impôs que da “árvore do
conhecimento do bem e do mal” não comesse, pois quando o fizesse, “certamente
morreria” (Gn. 2.9, 16-17).
Nesse ponto Calvino diz:“Deve-se, portanto, mirar mais alto, visto que a proibição da árvore
do conhecimento do bem e do mal foi um teste de obediência; de
modo que, ao obedecer, Adão podia provar que se sujeitava à
autoridade de Deus, de livre e deliberada vontade. Com efeito, o
próprio nome da árvore evidencia que o propósito do preceito não
era outro senão que, contente com sua sorte, o homem não se
alçasse mais alto, movido de ímpia cobiça.”
“Portanto, Adão podia manter-se [o livre-arbítrio], se o quisesse,
visto que não caiu senão de sua própria vontade. Entretanto, já que
sua perseverança era flexível, por isso veio tão facilmente a cair.
Contudo, a escolha do bem e do mal lhe era livre. Não só isso, mas
ainda suma retidão havia em sua mente e em sua vontade, e todas
as partes orgânicas estavam adequadamente ajustadas à sua
obediência, até que, perdendo-se a si próprio, corrompeu todo o
bem que nele havia.”
Já conhecemos a história, Eva e Adão comeram do fruto proibido e atraíram
sobre si a mesma maldição do pecado que estava sobre o tentador, Satanás.
Mais uma vez Calvino explica que:
“Entretanto, ao mesmo tempo é preciso notar que o primeiro
homem se alijou [afastou] da soberania de Deus, porque não só se
fez presa aos engodos de Satanás, mas ainda, desprezando a
verdade, se desviou para a mentira. E de fato, desprezada a palavra
de Deus, quebrantada lhe é toda reverência, pois não se preserva de
outra maneira sua majestade entre nós, nem seu culto é mantido
íntegro, a não ser enquanto atenciosamente ouvirmos sua voz.
Conseqüentemente, a raiz da queda foi a falta de fidelidade.”
Logo, a culpa do pecado, e a consequente existência do mal está totalmente
atrelada aos atos do homem, que no desejo de ser como Deus (Gn. 3:4-6), Dele se
afastou, e por esse afastamento trouxe sobre toda a Terra o efeito devastador do mal,
através do pecado (Gn. 3.17).
1.5 HARMONIZANDO AS TEORIAS E APONTANDO PARA UMA
TEODICÉIA BÍBLICA
Agora, posto que já pudemos ver, basicamente, as três mais imponentes
teodicéias cristãs, é necessário concluirmos e respondermos: afinal de onde o mal veio,
e qual o seu propósito no mundo?Com absoluta certeza, se olharmos para a vida prática, o mal contribui para o
aperfeiçoamento do caráter dos cristãos que o suportam e vencem, pois assim a Bíblia
ensina em diversas passagens (Sl. 116.15, Tg. 5.10-11, 1Pe. 4.19).
Também, pensando como Agostinho e Calvino, de maneira alguma podemos
atribuir a Deus a criação do mal, mas este é decorrência exclusiva da atitude do homem
de escolher – quando assim podia fazer livremente – pelo caminho do pecado e não da
fidelidade à Deus, mesmo que tenha sido tentado pelo Diabo, visto que possuía
completa capacidade de resisti-lo – não o fazendo por livre escolha.
Assim, podemos concluir, sem sombra de dúvidas, que a origem do mal é o
afastamento e desobediência à vontade de Deus. Pode parecer muito simplista essa
afirmação, mas Aquele que possui Nele mesmo todas as coisas e no qual habita toda a
plenitude, assim determinou em sua soberana vontade (Is. 43.13).
Logo, a busca da independência de Deus, primeiramente de Lúcifer, e depois do
homem, levou o mundo, que era perfeito, ao atual estado de perversidade e sofrimento
(Ec. 7.9).
Entretanto, podemos ter certeza que todas as coisas, sejam boas, sejam más,
estão contribuindo para o propósito de Deus (Rm. 8.28-30), expresso em Cristo Jesus
(Rm. 5.18-21), que não podemos distinguir claramente agora (Dt. 29.29), mas em breve,
quando Ele vier, nós compreenderemos perfeitamente (1Co. 13.12).
Assim, se da existência do mal, deriva mais glória a Deus – pois o mal acentua
ainda mais a completa bondade, perfeição, justiça e santidade de Deus – cumpre aos
cristãos, com todo temor (Hb. 12.25), se alegrarem por terem sido alcançados e feitos
participantes da vocação celestial (Hb. 3:1).
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